Mickey 7
Depois de jogar Split Fiction fiquei refletindo bastante sobre o que constitui ficção científica. É só uma obra abordar uma espécie de futurologia? Acredito que não, temos vários subgêneros de ficção científica que podem se passar no passado, como Steam Punk. Seria apenas a subversão da realidade a partir de aspectos científicos? Não me parece uma definição completa... Lembro de ficar bastante frustrado com a sexta temporada de Black Mirror por ter episódios que em nada tinham de ficção científica, eram fantasias com tecnologia.
Com isso em mente, ouvi falar do novo filme do diretor de Parasita. Mickey 17 estreou nos cinemas recentemente apesar de seus rumores de lançamento virem desde o ano passado. Eu estou superempolgado para assisti-lo, entender esse lance de seres humanos descartáveis a partir dos olhos do Bong Joon-Ho parece interessante.
Acontece que no meio do caminho, eu descobri que a obra é a adaptação de um livro escrito por um astrofísico professor de física quântica. Aquele sentimento de "o livro sempre é melhor que o filme" foi a enésima potência, então resolvi lê-lo antes do filme, e olha... Acho que tomei a decisão acertada! Devorei o livro em 3 dias de tão bom que ele é.
Mickey 7, sim são 10 Mickeys a menos, cria um universo onde é possível fazer o upload da nossa mente e imprimir biotecnologicamente um novo corpo exatamente igual a nós... Mas será que é exatamente igual mesmo? Acho que essa tecnologia não é algo novo para a ficção científica, Black Mirror tem um punhado de episódios com o mesmo feito. Acontece que dessa vez temos essa análise hamletiana a partir da ótica da pessoa que foi impressa. Aí que está o brilhantismo da narrativa e eu não sei se o filme conseguirá entregar apropriadamente.
Para fazer mais sentido sobre o como essa tecnologia é usada na trama, entenda que Mickey está em uma viagem espacial com destino a uma nova colônia humana e seu ofício profissional é morrer. Sim, ser descartável. Diante de todas as necessidades que uma tripulação precisa no espaço, o autor, de maneira genial, entendeu que precisa-se de uma pessoa disponível para fazer qualquer coisa mesmo que isso coloque sua vida em risco, e como a trama bem detalha, existe centenas de possibilidades de como morrer no espaço. Para resolver esse problema, basta fazer o upload da sua mente, ter matéria orgânica suficiente para imprimir um punhado de proteínas e água, injetar a mente novamente e, voilá, temos a imortalidade. Tem todo um paralelo a ser traçado em comparação com Full Metal Alchemist(FMA é sci-fi?), mas não é o caso aqui, a integração da mente e corpo funciona. Mas e aí, o Gustavo2 é o mesmo Gustavo1? Saber que poderá ter um Gustavo3 me tira o medo da morte? As outras pessoas saberem que pode ter um Gustavo3 tornam elas cínicas?
Adorei como foi utilizado o paradoxo do barco de Teseu para esta comparação, onde esta pura materialização da vida nos traz a dilemas filosóficos já existentes. Quando li Homo-Deus, se bem me lembro, Harari afirma que nossa geração será a última mortal. Com a possibilidade do armazenamento da nossa mente e o possível download em outro corpo podemos não morrer mais, mas não precisamos ir tão longe. O mercado do rejuvenescimento está de vento em popa, já não seríamos nós trocando peças do barco? E esta "evolução", como apresentado pelo Harari, será utilizados para que fins na sociedade atual? O mais sonhado desejo dos deuses, a imortalidade, é simplesmente mais um fardo de um proletário.
Além de toda esta filosofagem, o livro explora bastante sobre como seria o processo de colonização de novos planetas. Em como os seres humanos eventualmente precisaram de outra Diáspora para evitar a extinção. Achei inclusive o termo acertadamente utilizado, como é abordado na narrativa os problemas de hoje são potencializados a escalas estelares: xenofobia, perseguição religiosa, racismo, capitalismo selvagem, etc.
E aí que chegamos na questão inicial sobre ficção-científica, acredito que seja este exercício de conseguir imaginar um mundo de possibilidades a partir da ciência, mas acima de tudo encaixar os dilemas dos seres humanos atuais a lidarem com eles.
Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la. Edmund Burke
Assim como a História, seria a ficção-científica a ferramenta que temos para nos preparar para o futuro?
🚨 Área com spoilers 🚨
No fim, pra mim o Mickey7 não é o Mickey8, porém eu entendo que ele seja o Mickey1. Nós somos aquilo que fazemos, somos aquilo que vivemos, Mickey7 teve uma experiência de contato com os Rastejadores que alterou completamente quem ele é, e eu acho que ficou muito bem ilustrado pelos seus sonhos. Freud explica.
Fiquei com um sentimento dúbio sobre o final, esperava mais. Não sei se foi só o meu desejo de continuar naquela trama, de saber se a terraformação funcionaria, mas apenas explicar que não existe o risco iminente do planeta explodir não foi o suficiente. E ainda mais, após a colônia concluída com sucesso, Mickey Barnes pode deixar de ser um prescindível?
Outro ponto legal que fiquei imaginando é em como essa trama daria um jogo legal. A premissa inicial de poder morrer e voltar várias vezes, com ou sem o conhecimento adquirido, não soa fantástico para um jogo?