Notas de uma mente inquieta

não-comida

Na postagem da edição de março da revista Superinteressante eu refleti sobre o conceito de não-lugar, e isso ficou ressoando na minha cabeça por bastante tempo. Como se tivesse sido desbloqueado uma funcionalidade no meu cérebro para reparar nessa arquitetura que tomou conta de tudo.

Para quem nunca ouviu falar deste conceito segue o artigo que mencionei anteriormente.

Em termos gerais, não-lugar remete aos espaços que não dispõem de uma identidade cultural forte, em que as relações humanas se traduzem em relações transitórias e anônimas. Esses lugares são comumente ligados à modernidade, globalização e também a urbanização. Fonte: conceito.de

Como cearense morando aqui no Paraná há quase 4 anos é muito comum eu ouvir a pergunta: o que você mais sente falta de Fortaleza? E eu já tenho toda uma resposta ensaiada que começo me desculpando com minha mãe mas a maior saudade é a comida, e em segundo lugar a comida da minha mãe.
Eu sou um apaixonado por comida regional brasileira e isso no Nordeste se reflete muito em comer pratos com miúdos: feijoada, sarrabulho, fígado acebolado, panelada, buchada, tripa frita, só em citar minha boca enche d'água. E, acredito que não surpreende ninguém com essa afirmação, esse tipo de comida não é comum em Curitiba.

Não que não tenha comidas regionais em Cwb, quando recebemos visitas dos fortalezenses por aqui sempre faço questão de espalhar a palavra da Carne de onça, do pão com bolinho e do Barreado para eles, pratos que eu gosto bastante, diga-se de passagem. Entendo o valor cultural que essas comidas representam e aposto que, assim como eu, deve ter um curitibano em algum lugar do mundo morrendo de saudade de uma boa farofa de pinhão.

Acontece que ao abrir o iFood para escolher uma jantinha você vai ter um milhão de opções que se resumem a pizza, sushi, hamburger, poke e cachorro-quente. O mesmo vale na praça de alimentação de um shopping, food-parks e até mesmo opções disponíveis de comida de rua. Muito próximo do conceito citado acima, essas não-comidas são versões sem identidade cultural apenas com o objetivo de globalizar a experiência gastronômica.

Tudo é uma cópia de uma cópia de uma cópia

Mas aí você deve está me questionando: você não tá dando só um nome diferente para fast-food? Acredito que não! O objetivo (e definição) do fast-food é ser uma comida rápida, com pouco preparação, para ser de fácil acesso financeiro e logístico. E não é esse meu ponto, meu problema é justamente com comidas sem personalidade. Em Fortaleza, tem uma rede de fast-food muito conhecida por ser um Delivery 24h que inclusive tinha uma aposta que se seu sanduíche não saísse em 20 minutos ele sairia de graça. O Azilados está muito longe do ser uma não-comida, seus pratos são pensados justamente entendendo o contexto cearense de gostos e produtos. Inclusive, bateu saudade do Nordestino (sanduíche de carne do sol com queijo coalho).

Anos atrás lembro de ter ficado indignado com este vídeo do canal Rio4Fun. O vídeo é excelente, eles passaram pelas 27 capitais do Brasil e experimentaram a comida que mais representava cada cidade. Duas delas são muito tristes: Pizza (SP) e X-Salada (DF). Nunca fui para Brasília, então minha ignorância me limita em entender se isso realmente é representativo, mas em São Paulo consigo lembrar do sanduíche de mortadela que é um zilhão de vezes mais significativo do que uma pizza de calabresa (que não é da Calábria), certo?

Eu consigo imaginar os motivos da difusão dessas comidas genéricas, quem nunca passou por aquele momento que está em um grupo de amigos para decidir o que pedir e a gente encerra a discussão com um "vamos de meia calabresa, meia portuguesa?". É cômodo ter esses sabores neutros que vão ser iguais do Rio Grande do Sul ao Pará. O problema é que, assim como os não-lugares, a propagação dessas opções pasteurizadas esconde a beleza na variedade multicultural que o Brasil tem. Assim como em uma versão gastronômica daquele filme do Spielberg, com o paladar preso em um imenso aeroporto cinza.

#desabafo #ensaios