Notas de uma mente inquieta

Três

tres

Eu tenho um hábito de me obrigar a ler coisas que fogem do meu radar. Como nerd/geek dos anos 90 tenho muitas referências de fantasia e ficção científica que cresceram junto comigo e, por comodidade, acabo lendo coisas muito parecidas. Então, deliberadamente procuro saber o que tá rolando de diferente e consumir pra ter contato com o novo. Uma deficiência que sei que tenho é sobre autoras mulheres, no meu repertório de leituras entram poucas obras escritas a partir de uma visão feminina e eu acho que isso faz toda diferença para a apresentação de uma história.

Nessa busca tive gratas surpresas, A vida não é justa é um dos meus livros favoritos da vida. Ano passado adorei ter conhecido A diferença invisível que apresenta o autismo sobre uma visão de uma menina.

Fiz essa introdução para explicar que ainda tenho a evoluir no amadurecimento cultural em relação a visões fora do comum nerd/geek.

Dito isto, iniciei o ano lendo Três e te adianto que achei chatíssimo. A história narra o cotidiano de três amigos e suas relações ao longo de décadas, acontece que são mais de 500 páginas descrevendo personagens completamente entediantes. Logo de início são apresentadas várias iscas que prendem a atenção do leitor: quem é o narrador personagem? cadê os pais da Nina? houve um assassinato? Admito que essas curiosidades me pegaram, principalmente sobre a personagem oculta. Vários personagens são introduzidos propositalmente a fim de confundir o leitor sobre essas iscas, e a autora consegue segurar esta tensão com habilidade.

Para uma história que se passa, literalmente, no dia a dia dos indivíduos é necessário apresentar certa profundidade emocional destes sujeitos, o que é feito muito porcamente.

Todos os personagens são unidimensionais: o bonitão conquistador, o gênio introspectivo, o rico soberbo, a louca apaixonada... Sobre o que mencionei de perspectiva feminina lá em cima, acho que este livro é um desserviço neste aspecto. Todas as personagens femininas são submissas ao amor romântico e vivem suas vidas para satisfazer as figuras masculinas que suas vidas orbitam. Fiquei me perguntando se esse livro passaria no Teste de Bechdel.

E é assim pra tudo. Todos os aspectos emocionais têm a profundidade de um pires. O tema principal do livro, a amizade, é explorado de maneira simplória. O que une os personagens principais? Por que eles são amigos? Acho que a amizade adolescente é um tema excelente a ser trabalhado e é algo muito vivo para muita gente. Aquela lembrança quentinha de que as relações naquela época eram eternas até a vida adulta adicionar um mundo de complicação. Mas neste livro a autora abusa dessa nostalgia sem pensar uma camada além de cada indivíduo. A amizade de Etienne, Nina e Adrien existe por pura conspiração do Universo, e por motivos ainda mais idiotas é reavivada(*).

Outro ponto que achei terrível foi um vício de escrita da autora que me fazia revirar os olhos toda vida que ela usava, e ti adianto, acontece TODO O TEMPO: quando o enredo estava acontecendo no passado, ela precisa citar alguma música, filme, ou acontecimento da época para tentar localizar o momento. A cena da queda do muro de Berlim chega a ser constrangedor de tão piegas.

🚨 Área com spoilers 🚨

Como falei na introdução, sobre a ótica do homem-hétero-nerd não sei a relevância que esta obra pode ter para pessoas trans. Sei que parece ser um trabalho empático narrando as dificuldades em sair do armário na adolescência, inclusive para amigos tão próximos, mas minha compreensão do tema se encerra aí, logo não tenho muito o que saber sobre. Fiquei com dúvida sobre a insistência do tema da cirurgia de redesignação sexual é algo realmente unânime entre mulheres trans? A maneira argumentada no livro faz sentido?

O responsável pela morte da Clotilde ser um alheio a história principal e a maneira que isso foi justificado é fraquíssimo, chega a ser anticlimático. Existe todo um plot em cima da morte da personagem que é encerrado em apenas um capítulo que tem zero conexão com o resto do livro. Foi decepcionantemente conveniente.

(*) Rapaz, eu não sei como é na França, mas quem, em são consciência, largaria o filho e a mulher para passar seus últimos dias na Terra com dois indivíduos que você não vê há 20 anos?

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