Notas de uma mente inquieta

V de Vingança

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Recentemente caí em um vídeo do Quadrinho na Sarjeta falando sobre a obra V de Vingança e como o filme fez um desserviço para o quadrinho a ponto de o próprio Alan Moore não querer ter seu nome relacionado a adaptação cinematográfica. Minha curiosidade despertou imediatamente "pera lá, eu lembro de ter gostado desse filme anos atrás quando assisti-o”. Na pegada de ler quadrinhos clássicos, dediquei algumas horas para saborear esta obra.

E o quadrinho é uma pancada de capa a capa, seja na intro do Alan Moore contando da ideia de expor o crescimento do fascimo e a perseguição de minorias na Inglaterra dos anos 80, a seção explicando as referências citadas na obra nas últimas páginas. No depoimento final, é muito bonito ver o Alan Moore explicitamente dando autoria ao David Lloyd, por mais que sempre tenhamos o nome dos desenhistas na capa é muito comum tratarmos a autoria apenas pelo escritor, e nessa HQ em específico fica muito evidente a participação do ilustrador para a dinâmica da narrativa.

Se você não faz ideia do que eu estou falando, V de Vingança é uma história que se passa em uma Inglaterra distópica onde várias cidades foram destruídas por bombas atômicas e um partido totalitário fascista tomou o poder. As referências ao nazismo são bem diretas e você tem todo um ar de “1984”, “Admirável Mundo Novo” e “Fahrenheit 451” isso com a adição de um vigilante aos moldes de um anti-heroi. Apesar da história se passar, majoritariamente, em 1998 ela narra sim uma realidade distópica, vale reforçar que o quadrinho foi lançado na década de 80.

A realização é belíssima, a dupla deliberadamente subverte as possibilidades de uma história em quadrinho contando toda uma história sem recursos de balões de pensamento, e em até muitos momentos balões de fala. Toda obra comunica-se visualmente através das ausências, desde a falta de contorno nos desenhos, a todo uma sequência de acontecimentos narrados pela voz-over de um programa de TV.

V é uma figura pitoresca com ares aristocratas, suas ações inicialmente pintam-se como de um vigilante em busca da defesa da Inglaterra, ao debruçar sobre sua história de vida logo apresenta-se como uma pessoa perturbada que defende piamente os fins justificando os meios. Inicialmente a discussão poderia ser sobre a violência aplicada é proporcional a sofrida, paradoxo da tolerância, enfrentamento da tirania mas logo entendemos que não é apenas isto.

Um dos momentos mais memoráveis do quadrinho é toda a sequência de tortura de Evey, sempre me impressiono com o poder da narrativa gráfica sequencial para intensificar esse tipo de realidade, também mencionei isto ao ler Palestina, nos subterfúgios utilizados visualmente para descrever a passagem de tempo. Neste mesmo capítulo temos a leitura da carta da Valerie que é extremamente tocante, temos ali uma demonstração da escrita para eternizar sentimentos. Uma verdadeira arma em tempos sombrios. Finalizando com Evey ao sair do confinamento metaforizando com a retirada do véu da ignorância.

-Conhecimento como o ar é vital para a vida.
-Se o conhecimento é como o ar, eu estou sendo sufocada
-Em absoluto. Estive ensinando você a respirar.

Visualmente a obra é estonteante, o uso de luz e sombra para dar contorno aos elementos gráficos é muito bem executado, além de uma camada além onde temos a colorização a partir luz emanada no local, como cores vibrantes e contrastantes dentro da boate, ou mais paz, clareza e suavidade no campo ao ar livre. Tudo isso podendo variar de uma penumbra desconexa dos cantos ermos da cidade à noite aos mais vívidos detalhes em um jardim.

Por fim, concordo bastante com o Linck sobre a divergência do final da história do quadrinho vs do filme. Fica evidenciado a desorientação que o V proporciona, que a mensagem é sobre a propagação anárquica de uma ideia e não de um modelo. Ideias precisam ser ruminadas, adaptadas a contextos, germinadas e podadas como violetas em um jardim. A própria Evey leva bastante tempo para entender o que estava por trás da máscara. Sei que daqui alguns anos relerei esta peça e encontrei novos significados para a ideia propagada. Esta mesma ideia sendo resumida a uma máscara e um discurso radical parece ser justamente a leitura simplória dos membros do partido.

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